Capítulo II
Minha rua nos finais de semana era meio movimentada devido aos botecos logo no inicio da subida, mas para as 20h de um domingo estava deserta, não havia uma viva alma passando. Dei sinal para o porteiro abrir a porta da garagem e entrei com o meu novo meio de transporte. Parei a moto numa vaga próxima a escadaria e subi até o primeiro andar onde fica meu apartamento. Toda a confusão de antes tinha me deixado cansado e meio perturbado, mas incrivelmente vivo. Fechei a porta atrás de mim e joguei as chaves na mesa da cozinha. Bebi um copo d’água e preparei um sanduíche pra me acalmar um pouco. Peguei o controle e liguei a pequena tv. “O número de casos relatados aumentou consideravelmente. Estima-se que os infectados cheguem a 89 no momento. Por medida de segurança a Ponte Rio-Niterói foi interditada e os aeroportos fechados. Cientistas dizem que a cura ainda está longe de aparecer...”.
Não me espantei com os números, dado o sufoco pelo qual havia passado um tempo antes. Precisava descansar, então tomei um banho e cai na cama como uma pedra.
Devo ter dormido umas 8h, senão menos. Acordei com sons de grito vindo da rua. Levantei-me e coloquei a cabeça pra fora da janela. A mesma cena se repetia, pessoas fugindo dos...zumbis. O porteiro coitado, saiu correndo da guarita em que estava por medo dos zumbis – devia ser uns dez – forçando as grades e estendendo seus braços em direção ao prédio. Já que a possibilidade de entrarem era pequena, não me importei muito...grande erro. Tomei banho, me vesti e tomei uma xícara de café. Novamente ligo a televisão e me deparo com um novo anúncio do jornal: “Foi descoberto por cientistas que essa nova mutação da raiva destrói todo o sistema imunológico do indivíduo”. A cena corta para uma entrevista por telefone com um dos cientistas.
-O novo estágio do vírus da raiva, que agora atinge os humanos, debilita todo o sistema imunológico acabando com os anticorpos do organismo, deixando-o vulnerável à entrada de bactérias e microorganismos, fazendo o infectado entrar em estágio de decomposição.
-Isso quer dizer que eles estão mortos? – perguntou a repórter.
-Bom...eer... sim e não. Veja, essa espécie nova de vírus acaba com o sistema imunológico, deixando a pessoa expostas às bactérias que causam a decomposição quando morremos. Daí o que acontece é que com a entrada das bactérias, todo o organismo entra em colapso. Os rins param de filtrar o sangue, o diafragma se enrijece tornando impossível respirar, o indivíduo sofre convulsões e por fim o coração deixa de bater. Assim sendo, a pessoa é declarada clinicamente morta, já que todas as funções que a deixavam antes viva se desligaram.
-Então como pode eles correrem, porque atacam as pessoas, e como estão vivos??
-Bom, nós sabemos disso porque trouxeram uma pessoa infectada para cá antes de falecer. Achamos que o vírus mantém o cérebro funcionando apesar da falta de oxigenação, e se o cérebro não precisa de oxigênio, por fim todo o resto do corpo também não precisaria, sendo o coração não mais necessário. Depois de um tempo, o cérebro passa a enviar impulsos elétricos para os músculos, e a pessoa “volta a vida”. Não sabemos ainda nem como, nem porque isso ocorre. O que sabemos, porém, é que a decomposição continua a consumir o corpo até que só reste a parte que não serve de matéria orgânica pras bactérias. O fato de os infectados poderem correr e exercer atividade básicas como escalarem pequenas superfícies e segurarem objetos, bom, os músculos passam a fazer respiração anaeróbica, ou seja, sem o uso de oxigênio. O ácido lático produzido é o que causa as cãibras nos seres humanos, mas como aparentemente as terminações nervosas estão mortas, eles não sentem dor nem cansaço. Fizemos alguns testes no espécime capturado, e detectamos que por não se cansarem, os infectados continuam o ritmo de uma corrida por tempo indeterminado. Isso, porém, leva ao desgaste dos músculos das pernas, e quando os músculos forem desgastados o suficiente, não será mais possível correrem de modo que, se tentassem, cairiam, pois não haveria força para isso. Esses seriam os “zumbis” dos filmes populares, que rastejam e mancam, não correm. Quanto ao fato de “caçarem” os seres humanos, não sabemos, o que sabemos é que a única coisa existente na mente deles é o instinto. Pelo vírus ter destruído o lobo frontal, eles não nos reconhecem como pessoas, mas sim como presas. Achamos que o fato de comerem carne humana seja uma tentativa de acabar com a fome que todos sentimos, mas como o sistema digestivo não funciona, não há como retirar energia do “alimento”, sendo a fome insaciável.
-E como as pessoas podem se defender desses seres?
-Já que o vírus misteriosamente se concentra no cérebro, pode-se acabar a ameaça do jeito que conhecemos dos filmes, danificando o cérebro ou decepando suas cabeças.
Desliguei a televisão. Parecia que a situação ia piorar, e muito. Escutei um som de metal vindo lá de baixo. Corri até a janela e me deparei com os zumbis amontoados, fazendo uma espécie de rampa sob o portão, até que ele cedeu e caiu. Decidi que era hora de ir embora dali. Peguei uma mochila e coloquei nela o que achei primordial, garrafa d’água, um tablete de Clor-in que tinha no banheiro, um rolo de papel higiênico dobrado (aquele rolo no meio ocupa espaço), umas barras de cereal e uns dois pacotes de miojo, um mapa de postos de gás e um kit de primeiros socorros. Coloquei uma calça jeans e um par de coturnos que comprei (sou headbanger e servi no exército por um ano), uma camisa e uma jaqueta de couro. Depois de vestido e com a mochila pronta, peguei minha faca de sobrevivência a muito guardada e coloquei-a na cintura junto com meu nextel e minha lanterna recarregável. Fui no meu quarto e peguei um facão com uma bela bainha em acabamento maia que tinha atrás da porta do quarto – presente do meu pai quando viajou pela América Central. Tendo pegado as chaves da moto e da casa (nunca se sabe se voltaria para lá) desci as escadas em direção à garagem. Subi na moto e dei a partida. Infelizmente não tinha um capacete para usar. O barulho do motor da moto deve ter alertado alguns zumbis na garagem, porque assim que comecei a acelerar vejo dois deles surgirem da curva e correrem em minha direção. Acelerei e baixei a cabeça em direção ao painel da moto. Naquele momento os dois emitiram aquele grunhido ao qual não havia me acostumado ainda, mas apesar de aquilo me gelar a alma, não recuei. Passei por entre os dois rapidamente, senti suas mãos frias e imundas arranharem minha mochila, mas não conseguiram agarrá-la. Quase bati com a moto na parede. Fiz a curva e sai pelo portão o mais rápido que pude.
Desisti da minha casa temporariamente. Isso foi o que aconteceu até agora, e a partir daqui, tudo o que acontecer vai definir como vai acabar. Para onde ir? O que fazer primeiro?
Acho melhor ir voltar pra casa do Vinicius, ver se ele está bem.
Desço a rua, viro a esquerda. O cenário de caos preenche totalmente a minha visão. Olho pelo espelhinho da moto, alguns zumbis tentam me seguir, mas param logo em seguida, parece que perceberam que não iam conseguir me alcançar naquela velocidade. Subo o viaduto e tento passar por entre os poucos carros parados. É meio apertado, mas acho que dá. Passo um, dois, três carros. Que droga, agora vai ser difícil conseguir, tem dois carros bloqueando a passagem. Tento pensar no que fazer... Já sei! Acelero a moto e tento levantar as pernas para evitar que batam nos pára-choques dos carros.
-Filho da p... – é, eu bati a canela na mala de um dos carros.
Passo pelo caminho apertado e vejo o resto do viaduto livre, estranho como aqui não tem uma viva alm... Caio no chão. Da onde esse filho da mãe surgiu? Tento empurrar ele com um das mãos enquanto busco minha faca com a outra. Sinto uma mistura de sangue e poeira cair no meu peito. Aquele zumbi devia ter atacado alguém há pouco tempo. As marcas de bala na camisa e os hematomas no rosto indicaram que a vítima tinha reagido. E se eu ficar mais um tempo pensando nisso a próxima vítima vai ser eu. Não vou deixar que um pedaço de carne podre me use como lanche! Empurro ele o mais forte que posso, mas ele volta na minha direção em busca do meu pescoço como se fosse um João Bobo. Não sei como, consegui segurar ele pelos cabelos, evitando que me mordesse. A uns poucos centímetros do seu rosto, quase consigo ver a carne dentro da sua boca apodrecendo, sua língua chicoteando em minha direção como se quisesse me envolver feito uma cobra. Seus olhos claros, com um tom cego me encarando me dão uma terrível sensação de mal estar.
Finalmente consigo tirar a faca do cinto, e num movimento circular atinjo a têmpora dele com toda minha força. Ele cai do meu lado com a boca ainda aberta, mas nem uma única gota d sangue sai do ferimento. Me levanto e retiro a faca encravada de sua cabeça numa só puxada. Não sei se consegui eer... vamos dizer matá-lo, então volto rapidamente para a moto, desembainho meu facão, me agacho ao seu lado e miro a lâmina em seu pescoço. Levanto os dois braços e desço rapidamente minha arma, separando completamente a cabeça do corpo. Melhor prevenir do que remediar. Só agora parei para reparar quem era, Marcos, o agora ex-segurança da rua do lado da minha. Não o conhecia muito bem, só cumprimentava quando o via. Sendo segurança, comecei a procurar por sua arma. Ah, achei. Ele tem um revólver .38, todas as balas no tambor ainda. Tiro o coldre de seu corpo e coloco em mim, encaixando meu novo brinquedo nele. Volto-me para o cadáver decepado e pego o resto das balas guardadas no pequeno estojo de seu cinto. Com uma leve sensação de prazer por ter livrado o mundo de uma dessas criaturas nojentas, embainho meu facão e coloco-o nas costas. Melhor mantê-lo por perto. Faço meu caminho de volta para a moto.
“Pow”, recebo uma pancada nas costas. Caio no chão e vejo figuras humanóides borradas. Minha visão vai escurecendo até apagar.